E porque a experiência nos diz que a música amplia as emoções do momento, resolvi emprestar ao texto uma das minhas preferidas...
Sou sobretudo mau de manhã, bem cedo quando o primeiro balde cai no poço. Quando todo eu pregas de carne ao sabor do vento como roupa no estendal à espera que uma doméstica gorda de avental lhes sacuda o pó. No lavatório a panela da sopa cheia dos pingos da noite, oblíqua sob um prato e um púcaro, restos mudos que engorduram (toda a minha vida restos mudos que engorduram) e eu sem paciência para mexer um ovo (quero dizer osso ou ambos) a não perceber se eu mais triste com a solidão da cozinha ou se ela mais triste por mim (que me perdoem a inconveniência quem assim a sentir, mas qualquer cozinha vazia de uma mulher é um quadro desolador... há fedores nauseabundos dizem que só possíveis numa cozinha abandonada, há tons soturnos de cinzas e castanhos apenas presentes na triste ausência de uma mulher... e como eles tingem a minha cozinha).
Eu e ela sozinhos depois que a minha mulher
- Vou-me embora
E mais tarde também a minha filha
- Vou-me embora
De maneiras que hoje em dia as ouço em todo o lado, como hoje no 60 para o cemitério da Ajuda quando de repente na rádio o animador
- Vou-me embora
em voz de mulher (os animadores de rádios têm em mim o mesmo efeito arrepiante dos dentes de garfo a rasgarem a loiça dum prato, porque por trás do largo sorriso em FM escondem o mesmo olhar pétreo e triste dos palhaços, o mesmo pedido enrolhado de socorro) e então nos noticiários, no trânsito, na previsão do tempo, a anunciar as músicas, apenas
- Vou-me embora
A vida são olás e adeus, toda ela, do primeiro abrir de olhos ao ultimo fechar, de modos que se me pedissem para a explicar a um audiório de crianças diria que os olás são como o chocolate que nos adoça e os adeus os bróculos que não gostamos mas nos fortalecem e fazem crescer... admito no entanto que por mais que mastigue nunca digeri o teus adeus, que tantas cáries me deixou no miocárdio. Por vezes no limite da dor e já anestesiado pelo terceiro ou quarto conhaque, pensei até ir ao dentista brasileiro em frente ao terminal perguntar quanto levava para me desvitalizar o coração, para desbastar com o alicate todo este nervo que me arde e substitui-lo por um silêncio frio de lápide onde gravásse "Aqui jazemos nós"...
- Ora, quanto mais se mexe na merda mais ela cheira mal. Tu precisas andar prá frente
disse-me o 15 dedos, meu colega de carreira. Chamamos-lhe 15 dedos porque em puto perdeu os 5 da mão esquerda a cortar madeira na serralharia do pai. Foi contratado para preencher a cota de deficientes na empresa, mas só faz az piores carreiras, as que apanham a escumalha da madrugada, porque esses não se queixam do condutor ser maneta e porque se o 15 dedos se espetar com eles num muro ninguém vai dar por isso
- Uma noite destas vens comigo e apanhamos umas miudas ali na Alameda, tás a precisar despejar-te em cima duma
o 15 dedos... nesta vida apanhamos com cada animal. No entanto na noite seguinte dei comigo a encostar o carro perto duma dessas artesãs do sexo... apesar destas mulheres não terem idade algo nela soava a tenro... talvez o sorriso doce de quem se procura integrar ou o frágil corpo que o sustinha... ou quem sabe não seria a sua armadilha para atraír ursos cansados e carentes... parece resultar. Descorri o vidro e fiz sinal para se aproximar. Num movimento suave de flamingo dobrou-se pela cintura e assomou com a cabeça pela janela do carro
- Queres companhia querido?
e antes que desfiásse o cardápio e respectivos orçamentos respondi
- Quanto custa a minha família de volta por uma noite?
... não creio que tenha percebido, mas estas miudas ouvem cada esquizitice que certamente consta ainda do seu menu um ultimo preço para "diversos"
- 100 euros, mas só visitas a família com borrachinha
Encaminhou-me para uma daquelas pensões que as paredes da velha Lisboa regurgitam de noite, onde os grunhidos de velhos exaustos por erecções tardias se harmonizam com o choro de prostitutas espancadas... e eu
- Deita-te de costas para mim e adormece. Quando acordares pega no dinheiro e deixa-me a dormir por favor
Não desconfiou, não estranhou, não fez um som... fixou-me numa atenção de quem inicia um puzzle de mil peças para logo desistir num olhar de compaixão... acedeu e deitou-se. Esperei que adormecesse, coloquei quatro notas de 20 e duas de 10 sobre a cabeceira e abri a velha pasta onde arquivo a alma... de lá retirei uma velha moldura em estanho com uma fotografia onde o nós não era apenas eu e coloquei-a sobre as notas... tirei também um pequeno e borbotado urso com o olho esquerdo por um fio e um botão no lugar do direito, companhia nas aventuras sonhadas pela Clarinha, e coloquei-o entre as duas almofadas... recostei-me, dissolvi na água uma saqueta daqueles pós de amortalhar ratos, bebi e fechou-se o pano sobre mim... e foi assim que por 100 euros numa breve noite eu nos voltei a ter pela ultima vez... vou-me embora...