E ali ensináste-me a perder... ali naquele banco de jardim, altar de pedra onde o nosso amor cordeiro foi sacrificado pela lâmina aguçada do teu não dá mais... e de repente eu já não ali contigo, eu a observar como as árvores nunca crescem iguais, a recordar-me das palmeiras no campo das cebolas que em prontidão de espanadores sacudiam das nuvens o fumo do escape da charrete amarela que antes de te mudares para Lisboa te trazia da Portela até mim, eu agora a sentir a Casa dos Bicos avançar encorralando-me contra os cargueiros no porto... tu a recordares-me de discussões, a justificares o teu não dá mais com episódios passados, a escalpelizar-nos no tom monocórdico e detalhado com que o meu professor de História do 9º ano relatava a queda do império romano, que tal como o nosso amor nunca haveria de conquistar o mundo... tu nos teus por isto, por aquilo e aqueloutro e eu detido no teu olhar de quem resiste como uma mulher mas acaba sempre por quebrar como uma menina em choro de berlindes, eu atento às tuas mãos numa magreza de quem jejuou durante dias a preparar junto do espelho um ponto final, onde as unhas num verniz desastrado deixavam adivinhar uma tentativa nervosa de compostura e assertividade como os primeiros passos de um bebé... eu a ver-me escorregar por entre a clivagem dos teus seios e a sentir o tremor dos teus tornozelos em pernas que já não sabiam abrir senão para me hospedarem, morada que sempre me aguardava apesar de todas as outras que clandestinamente visitava, pois que a mulher perfeita não se faz senão de muitas e onde a minha sede de ti não se renovava senão bebendo de outras fontes... ouvia então o teu sermão num arrependimento arrogante pendurado no meu beiço de menino mimado cujas traquinices sem maldade te foram desgastando como a valsa lenta das ondas que engolem as dunas da caparica... terminado o discurso e só então me olhaste nos olhos, num olhar pétreo que me trespassou, num orgulho guerreiro de William Wallace sobre o campo de batalha de Falkirk pejado de ingleses... como se ali tivésses aprendido a não ceder, a não mais chorar, a vencer... quanto a mim, era apenas mais um ralhete e certamente umas lágrimas jurando arrependimento enxugadas com juras de redempção e um jantar a dois no italiano ali como quem vira para a Estrela mas não chega a virar, te devolveriam imediatamente a mim numa travessa... na manhã seguinte lá estarias tu com um sorriso apaixonado de adolescente, vestida com a minha camisa de flanela, a fazer-me uma omelete de queijo com tiras de bacon frito e eu beijando-te a testa numa promessa de reinício gasta como a memória da minha avó Teresa que, desde que o meu avô Abílio bateu a bota vai para três anos, iniciou um caso com um alemão, um tal de Alzáimer que nunca vi mas com quem, segundo a D. Alzira que vai lá aquecer-lhe um chá de tília e cuidar dos piriquitos, passa o dia a conversar. Depois de entregar a minha encomenda a uma nova rica que conheci outro dia numa cervejaria fina para os lados da Lapa, recém-casada com um capitão cuja vida passada no alto-mar me permite entrar pela porta da frente sem receios de fuga pela janela com as calças na mão, dirigi-me para o teu 3º andar em Arroios, desviando-me a custo da chuva meteórica de velhos e prostitutas que se me atravessavam em contra-mão na Almirante Reis... trriiimmm...e nada... trrriiimmmm trrrrriiiiiimmmmmmm... e novamente nenhum sobe fofo pela rouquidão do intercomunicador... a moça da Veste Brasil a dizer que te viu sair apressada a tropeçar num trolley...ok, foi ver a mãe à terra... dei uma semana e como o sobe fofo continuava mudo liguei para a tua mãe que nunca me suportou e que entre os deixa a minha filha em paz seu porco e as ameaças de que os irmãos dela se te apanham espetam-te com um ramo de oliveira pelo cu e poem-te sal grosso e vinagre para te aliviar a dor, lá me confirmou que desde que havias discutido com ela ao telefone porque sempre te repetia que eu era má rés, nunca mais havia sabido nada de ti... na agência o teu patrão explodia em cogumelos nucleares detonados por todo o trabalho que havias deixado por fazer e ela que não me apareça mais à frente ouviu... nada, nenhum rastro, nem migalhas de ti, nem sequer um pedaço de tecido preso num galho, e então eu a caír em espiral numa aflição asmática e todos os dias a tocar no 3º andar de Arroios, a ligar para a casa da tua mãe que desligava ao ouvir a minha voz, a passar pela agência onde o teu patrão já arranjámos uma nova empregada, a procurar-te nos queques e meias-de-leite da Jóia do Chile, nas montras da Guerra Junqueiro, no 28 da Portela, no bater de asas das gaivotas no Cais das Colunas... e nada... eu sem fome, sem sono e a maldita espiral a afunilar... e então a procurar-te na caçadeira do meu falecido avô guardada no armário... e ali, eu que só me encontrava quando me perdia noutras saias, perdi-me para sempre por não mais encontrar a tua...