quarta-feira, 22 de outubro de 2008

M...


Naquela manhã éramos eu e tu, personagens centrais num enredo que ainda não sabíamos nas suas cenas finais.
Na ultima noite usaste o soutien branco, sarapintado de bolas pretas, apoio dalmático, discretamente torneado por pequenas pétalas de renda negra, que embalava os teus seios quando as minhas mãos se ausentavam... acordavas sempre com uma imensa fome de Universo, vingando-te no pequeno-almoço... recordo cada detalhe... irritava-me a tua boa disposição matinal, enquanto eu, no outro prato da balança, acordava com exércitos a marcharem por cima de mim... a tua refeição colorida, leve... e enquanto me voltavas a chatear com a merda do meu colesterol, chacinavas no espremedor três ou quatro laranjas, invadias o frasco de compota e alcatroavas de doce uma torrada, comias uma ou duas bolachas orfãs de sabor e para o caminho um iogurte natural, que acomodavas na tua bolsa, perdido entre chaves, batons, cremes hidratantes, recibos, telemóvel... que raio, há sempre demasiada tralha na vida de uma mulher! Cabeça, bolsa e coração, armazéns do Martim Moniz, mas onde nada se vende a retalho e onde tudo sai, mais cedo ou mais tarde, demasiado caro a quem lá compra. E eu ali, sentado na mesa, intenção de mim, encurvado sobre uma chávena de café, despejando um pacote de açucar, que se detem instantes á tona, doce Atlantis afogada num mar nervoso de negro vício, eu ali com a lassidão de um cão velho em final de vida que se deixa ficar, observando o teu bailado das 8h... Naquela noite, depois dos nossos corpos se saciarem, um vazio profundo me revelou todo o descabimento, a falta de nexo de todo o acto, daquele "nós", e passei o resto da noite a magicar maneiras de te mandar para a puta que te pariu, mas com uma candura tal, porque todo o homem é cobarde nestas alturas, que sentísses ser também tua a minha vontade de partir...
Aguardei então a tua saída, despediste-te de mim com um beijo na testa, " amor, mais logo faço-te umas pataniscas com arroz de cenoura para o jantar, como tu tanto gostas ", porque eu merecia, disséste tu... Mas a vontade que tinha de me pirar dali, de ti, era forte demais para se comover, nem hesitei e peguei logo uma folha de papel, seria ali que me iria despedir... sem vergonha, sem coragem, com todos os clichés e truques do politicamente correcto, todos os "não és tu, sou eu", "mereces melhor que uma carcaça velha", "preciso de um tempo só para mim" e mesmo um "não tarda nada arranjas outro que te fará feliz vais ver"... as razões eram todas e nenhuma... mas sempre fui pragmático nestas coisas, sofre-se o que tem de se sofrer e parte-se para a próxima, não há que arrastar, há que desaparecer... não gosto do que é situado, contextualizado, relativo, declarações de que se está em todo o lado não estando em lado nenhum... longe da vista longe do coração, e não se gosta por obrigação... com o polegar premi a mola da caneta, cavilha da granada que explodiria sobre ti, e comecei a escrever... de repente, senti um pequeno formigueiro percorrer-me o braço... dúvidas? Esitação? Incertezas?... a uma dormência cada vez mais intensa acompanhou então a minha respiração que surgia agora entrecortada, esforçada e profunda como um ataque de ansiedade, cada vez mais sufocante... "Não!!", gritei já eu a caminho do chão, onde a chávena de café já se estilhaçava, adivinhando o ataque fulminante que fez explodir o meu peito... mais tarde consegui-me levantar... mas já não por mim, já amortalhado em panos, antes de me ensacarem de preto e enfiarem num gavetão...
Foste tu quem me descubriu ali estatelado a contemplar o tecto de olhos vítreos... morto mas ainda senti o pânico, a tua desorientação... na carta que ainda estava por cima da mesa leste:



" Minha querida, têm sido tão bons estes tempos que temos passado juntos, és uma mulher fantástica e sei que tenho sorte por te ter comigo, por me quereres a teu lado. Nunca fui de me manter quieto por muito tempo, nunca consegui viver para ninguém senão para mim, e contigo consegui perceber o que é isto a que chamam de partilha, dedicação... M... "



Quis o meu fado que aquele "M" permanecesse isolado, sem o "as" que o completaria... e quis uma coincidência que o dia seguinte fosse 14 de Fevereiro... e eis como uma carta de despedida, que sem o "Mas", se transformou ali, para ela e para sempre, numa carta para o dia dos Namorados... Ela nunca me esqueceu... não voltou a apaixonar-se... e ainda hoje, quando ouço os seus passos aproximarem-se da minha eterna morada de mármore onde me vem chorar, ainda que morto, o meu coração sangra de culpa...




2 comentários:

a gi* disse...

Wow!!

Q rebuscado, genial, absolutamente genial :D

Adorei a história, parabens, e espero q n seja baseada em factos reais q isto lido é giro mas vivido era fod***!

arturzinho disse...

fiquei impressionado!