… continuação
10 anos depois…
E nessa altura já tudo nele negava a vida… “Há uma altura na vida em que é forçoso escolher – ou o sonho ou a vida prática” e eu compreendia a sua revolta ao arremessar a porta… esperava sempre e ainda hoje que ali, pelo menos ali, a realidade não entrásse, que o seu mundo sonhado sobre ele caísse como um véu apolíneo. Mas a realidade é uma velha gorda e verruguenta de avental que sacode as ilusões como poeira e com esgares de nojo e autoridade enxota os sonhos como ratos… e ou nos acomodamos ou lhe tentamos fugir. O meu pai havia então encontrado o seu pequeno globo de neve, mas neste, em lugar de confettis, um desvario de bolhas ascendentes numa fuga de cevada que engolia pelo gargalo e lhe subvertia os nervos…
Ele à porta da casa de banho com as calças pelos tornozelos
- Cuidem da vossa mãe, é o melhor que têm na vida
a esbracejar sem nexo com o sal das lágrimas a gretar-lhe os lábios gelados da cerveja, com a camisa aberta, mostruário de flanela exibindo um velho casco de costelas, pregas de carne, pelos grisalhos e uma ascíte aguda… eu no beliche a espreitar por cima da tábua que só me deixava ver meio pai enquanto o mais novo a puxar-lhe as calças para cima
- Vá lá pai
e eu a perceber-lhe no tremer da voz que não calças mas a tentar erguer um pai
- Por favor pai
a partir do nada, peça a peça como se ele uma das suas torres de lego que na altura dos sonhos acreditava ser capaz de elevar aos céus, mas que ao sentir a comichão a realidade e as suas leis faziam tombar…
O mais velho no beliche por baixo do meu, ele que já na altura alheado, nunca por frieza mas por sobreexaltação sináptica, sempre suspenso num olhar espantado e absorto de astronauta e a perguntar-se como o Raul Brandão “Terá toda a gente esta mesma luta consigo para se acostumar a viver? Que mal excepcional é este de viver? E porque é que tanta criatura que sofre crava as unhas desesperadas na vida, sem a querer largar?”
Eu a afundar-me na almofada e a perder de vista a metade que restava do meu pai, a perguntar para o tecto do rés-do-chão, porque se desfez o teu abraço? Quando é que deixámos de caber no teu peito? Como foi que secáste?
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