E todos os dias passava no Bairro das Palmeiras a caminho do trabalho. Sei de cor o Bairro das Palmeiras, entalado entre a Carris e os reclames do Ginásio, onde carantonhas enormes de dentes reluzentes troçavam da velha casa da cultura, cada vez mais sufocada entre ervas-daninha. Duzentos e poucos metros distavam o início do final do bairro, cujas únicas palmeiras em redor eram as chaminés do parque industrial, onde dos troncos metálicos equipados à farol pendiam enormes folhas gasosas que ao tocarem o céu faziam as nuvens chorar ácido sobre as casas já quase despidas de estuque. Recordo-me de estar sempre à coca com o pé nervoso no travão, não fosse alguém atravessar-se no meu caminho sem olhar... estrada de bairro pobre não tem passadeira pois quem toma do sistema um chuto no cu devolve as graças com um pontapé nos tomates e dita as regras aos peões no seu tabuleiro. A morbidez das casas idosas e de pele estalada era interrompida a meio pelo infantário, uma pequena construção pintada em tiras berrantes de arco-íris como uma velha que exagera na maquiagem num esforço de juventude, uma caixa mágica onde à porta auxiliares vestidas em toalhas de pic-nic comparavam maridos e lançavam olhares de pastor-alemão sobre o rebanho de sorrisos de palmo e meio que se encabalhotavam por entre brinquedos estragados e lápis de cera. Paredes meias com o infantário habitações de famílias africanas onde mulheres de avental descascavam à janela feijão verde para alguidares de plástico pousados nos parapeitos, conversando em voz alta com as vizinhas, alheias à anorexia cinzenta dos toxicodependentes que entravam e saíam como cucos de ruínas que outrora foram casas, executando arqueologias em busca de novas veias a fim de injectar "fazes-de-conta" cozinhados numa colher e diluídos em gotas de limão. Já ao fim da rua a sede do clube do bairro, "Os Palmeirenses", desde 1938, lia-se por cima do emblema em azulejo lascado, do qual constavam uma bola de couro encimada por uma pomba branca trazendo um ramo de oliveira no bico... um disparate sem nexo como de resto o são todos os emblemas... porque não uma ou duas palmeiras no lugar do raio da pomba perguntava eu de mim para mim sempre que lá passava, observado de soslaio pelos bêbados locais, homens de narizes abatatados com caras de cirrose e barba desgrenhada que emborcavam minis ao final da tarde com desempregados trintões enfezados que mal enchiam os blusões de ganga manchados, montados na bê-éme-xis do filho e apoiados no corrimão enquanto lançavam trocadilhos ordinários à empregada do café do clube que avançava um pano sobre o balcão num vagar de morsa, antes de regressarem a casa para jantar e dar umas sacudidelas na mulher e uns carolos nos miudos apenas porque sim. Por duas ocasiões e não mais falei com gente do Bairro das Palmeiras, uma em que perto da biblioteca municipal um arrumador que já muitas vezes havia lá visto em movimentos de cuco e que, reparando no dossier que levava me disse também andar a estudar, a terminar o nono ano de noite, e uma outra vez quando uma tampa de esgoto mal fechada me estoirou um pneu e, enquanto eu dava ao macaco e dizia mal da minha sorte, um pequeno sorriso de tez morena e dois totós se escapou da caixa colorida estendendo-me a mão para um passou-bem e dizendo num sopro de lira " não fique triste senhor ".
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
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2 comentários:
que texto mr henry!!
Adoro as tuas descrições, pormenores que pintam imagens ;)
Mt bom*
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