- Pai...
E nada me saía...
- Pai...
Aos 3 anos... tudo é "porquê?" aos 3 anos... depois crescemos e aprendemos respostas, aprendemos que há muitas respostas... aprendemos e trocamos de respostas... perguntamos de outra forma... aprendemos a escolher e manter as nossas respostas... depois percebemos que qualquer resposta serve porque qualquer resposta é inútil... e por fim percebemos que nada é "porquê?" e que tudo simplesmente "é". Mas ali eu tinha 3 anos e entre os porquês eu tinha uma resposta
- Assim não Pai...
Sabia que "Assim não Pai"... não sabia como, mas sabia que "Assim não Pai"... porque assim me o diziam as luvas espessas que a Mãe apreciava ao espelho, feitas daquilo que devia percorrer-lhe as veias e não pingar o lavatório, e que tu, alfaiate por breves instantes, teceste num corte decidido sem agulha mas antes com o que a avó usava para matar coelhos... percebia nos teus olhos e na tua insistência que querias fazer-lhe um vestido a condizer, mas ela não deve ter gostado das luvas, pois não te deixava entrar e berrava para o espelho enquanto gotejava pelo rosto...
- Deixa a Mãe Pai! Vá lá...
Quando tudo está em silêncio conseguimos ouvir até quem não fala, mas ali e para ti eu falava mais baixinho do que aquilo que não se diz... na sala, por cima da mesa, tudo te ignorava... o bolo mantinha-se no centro, banhado em calda e encasacado em chantilly encrustado por amendoins... rebuçados de fruta jogavam às escondidas mesa fora, torneando a reunião de sandes triangulares de queijo e fiambre, que pareciam discutir qual a estratégia a utilizar para que a criançada não cedesse mais às tentações das miniaturas dispostas no prato do canto oposto da mesa... os copos de plástico, encaixados, aguentavam o pino enquanto às garrafas não lhes saltasse a tampa. Trinaranjo de Laranja ou Maracujá e Coca-Cola para os mais pequenos e uma garrafa de vinho tinto para quem já perdeu o direito a ser doce...
E enquanto algumas mãos te tentavam demover da ideia do vestido escarlate, eu procurei a paz da cozinha, e então ainda mais "Assim não Pai! Assim não dá, por favor!"
- Avó!
E a velhota assoalhava o chão da cozinha, estendida em poses de santinha de gesso, como aquelas que se vendem em Fátima... calma, a contemplar o tecto, e eu a pensar que lá fora haviam nuvens multiformes numa gigantesca tela azul e ali apenas um tímido tubo de luz fluorescente cercado por ameaçadoras manchas de bolor... E de repente a Mãe
- Vamos, rápido!
E fomos... fomos todos menos tu... e o bolo veio também... e tu não estavas lá quando soprei a vela com o 3, tal como não estiveste quando soprei a vela com o 4 e tal como voltáste a não estar presente para me incentivar a soprar com mais força quando o 5 não se queria apagar... e muito mais velas soprei até hoje quando te vi sem me veres... e percebi que depois de mim, da Mãe, do bolo, tudo o mais te foi abandonando, tudo te foi dizendo "Assim não..."... a cor do teu cabelo emigrou... a gravidade que te segurava o rosto desistiu e já nada habita em ti... já á muito que deixei de perguntar "porquê?", mas hoje como naquele dia continuo a sentir que "Assim não Pai...", e assim não foi...
3 comentários:
Vou contar-te um segrado, eu odeio ler :x Muito lógico para quem escreve mas é verdade, e é assim que "passo o filtro" ao que faço, se me aborrecer a ler, não presta (isto sempre na minha visão da coisa claro está) e qt mais aumenta o tamanho, maior a probabilidade de me aborrecer..
Pois este senhor que aqui tens li de inicio ao fim sem pensar desistir, e acho que isso já diz muito ;)
Eu acho que está mesmo muito bem escrito, e adoro descrições :)
Frase eleita: "Quando tudo está em silêncio conseguimos ouvir até quem não fala" :D
*
olha o blog do meu colega (que eu nunca vejo nas aulas!)
a escrever assim devias estar num curso sem regras da apa, sem relatórios com limites de páginas, sem professores a dizerem para sermos "parcimoniosos"!
adorei o texto!
Tenho estado a tentar elaborar um comentário ... mas fiquei sem palavras ... ou melhor, perdi a capacidade de construir qualquer coisa com nexo, depois de ler este texto tão fortemente maravilhoso.
Parece que me revejo a afagar o cabelo desse menino no meu colo ...
Tens um dom, meu querido!
Beijocas
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