terça-feira, 14 de outubro de 2008

A Mulher por... John Kacere

Jutta (1973)
Kacere, John (Estados Unidos)



" ... não ía desperdiçar aquela chance de me exercitar nas finas artes de feiticeiro, por isso a coisa foi assim: surgiram, em combustão, gotas de gordura nos metais das minhas faces, meu rosto começou a transmudar-se, primeiro a casca dos meus olhos, logo depois a massa obscena da boca, num instante eu era o canalha da cama, e eu li na chama dos seus olhos «sim, você canalha é que eu amo», e sempre atento aos sinais da sua carne eu passei então a usar a língua, muda e coleante, capaz sozinha das posturas mais inconcebíveis, e não demorou ela mexeu os lábios de um jeito mole e disse um «sacana» bem dúbio, era preciso conhecer de perto a sua boca pra saber o que ela tinha dito, e era preciso conhecer essa femeazinha de várias telhas para saber que sugestão, eu fiz de conta que tinha esquecido tudo e que o mundo agora só tinha aquele apertado metro de diametro, continuei o canalha da cama e ela dum jeito mais quente tornou a dizer «sacana», que era o mesmo que dizer «me convida pra deitar na grama», ela que nos arroubos de bucolismo me pedia sempre pra trepar no mato, daí que furjei uma víbora no músculo viscoso da língua, e conformei-lhe cabeça, e uma sórdida altivez, «an» «an» «an» eu disse mexendo a ponta devassa, «sacana sacana» ela disse numa entrega hipnótica, já entrando quem sabe em estado de graça, mantendo contudo as narinas plenas, uma respiração ruidosa tumultuando o colo, os peitos empinados subindo e descendo as penas todas do corpo mobilizadas, tanto fazia dizer no caso que a ave já tinha o vôo pronto, ou que a ave tinha antes as asas arriadas, e foi pra melar inda mais o desejo dela que levei a mão bem perto do seu rosto, e comecei com meu dedo do meio a roçar o seu lábio de baixo, e foi primeiro uma tremura, e foi depois uma queimadura intensa, sua boca foi se abrindo aos poucos pr´um desempenho perfeito, e começamos a nos dizer coisas através dos olhos ( essa linguagem que eu também ensinei a ela ), e atento na sua boca, que eu fazia fingir como se fosse, eu estava dizendo claramente com os olhos «você nunca tinha imaginado antes que tivesse no teu corpo um lugar tão certo pr´esse meu dedo enquanto eu te varava e você gemia» e logo seus olhos me responderam num grito «sacana sacana sacana» como se dissessem «me rasga me sangra me pisa», e senti a ponta da sua língua tocando a ponta do meu dedo, lambendo furtiva minha unha, e senti seus dentes, que já tinham perdido o corte, mordiscando a polpa úmida, ela mamava sôfrega a minha isca, e a gente se olhava, e vazava visgo das suas pupilas, e era o mesmo que eu estar ouvindo o que ela tinha dito antes tantas vezes dum jeito ambivalente «não conheci ninguém que trabalhasse como você, você é sem dúvida o melhor artesão do meu corpo», por isso continuei modelando a lascívia em sua boca, e logo depois desci a mão no gesso quente do pescoço, e não demorou seus poros de ventosa me engoliam gulosamente os dedos e foi com a boca imunda que eu disse num vento súbito «estou descalço» e vi então que um virulento desespero tomava conta dela, mas eu sem pressa fui dizendo «estou sem meias e sem sapatos, os meus pés como sempre estão limpos e úmidos» e eu de repente ouvi dos seus olhos um alucinado grito de socorro «larga logo em cima de mim todos os teus demônios, é só com eles que eu alcanço o gozo»... "


Raduan Nassar, Um Copo de Cólera

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