Naquela noite fomos para tua casa. Chegámos à rua transversal à avenida onde ficava o teu prédio. Para estacionar o carro, reduzias para primeira, calcavas a embraiagem com o esquerdo e insistias no acelarador com o direito, mas já de prevenção no travão, o motor rugia e finalmente saltavamos o equador que separava o asfalto do passeio, tal qual fazem os cavalos numa prova de hipismo.
- Espera 2 minutos aqui Carlos, é tarde e não quero que os vizinhos te vejam entrar a esta hora comigo. Esperas 2 minutos depois de eu dobrar a esquina e vens. Não te esqueças de trancar o carro.
E eu esperava, tal como o Xau-Xau da minha amiga Graça esperava sempre à porta depois do passeio, que ela fosse buscar um pano para lhe limpar as patas... saí do carro mal dobráste a esquina... aguardei mais um pouco, dei um xuto numa lata e afugentei o gato que me abservava do outro lado de uma cerca de arame. Segui então os teus passos... toquei à campainha, abriste-me a porta do prédio, entrei no elevador, saí no 2º andar, entrei e fechei a porta que tinhas deixado entreaberta.
- Queres trincar qualquer coisa?
- Não me apetece Luisa. Onde está o comando da televisão?
Gostava do silêncio das noites que passava contigo... toda a cidade durmia menos nós, na tua cozinha, de luz acesa, a televisão nas notícias... apreciava a inocência das tuas costas, voltada para o balcão da cozinha, de mãos pequeninas, a barrar dois paezinhos de leite com doce de morango, a fazer lembrar as malditas miniaturas que insistias em impingir-me cada vez que íamos ao Japonês em Odivelas. Eu, homem de prato exagerado, homem de carne e molho espesso, eu que apreciava a erosão de uma montanha de guisado, que limpava os espólios com uma pedaço de pão saloio... eu contigo no Japonês, sentados ao lado de uma passadeira onde minusculos pires apressados desfilavam miniaturas de peixe enrolado, pedacinhos de fruta, tacinhas de arroz... eu que só apreciava aquela passadeira contigo.
- Temos de ir mais vezes ao Japonês. É bom não é?!
- É sim fofinha.
Fomos um pouco para a sala. Ligámos a televisão, abrimos uma garrafa de Porto Offley, e sentámo-nos no sofá, enrolados na colcha... eramos Kitsch e eramos Trés Chiq, eramos Alfama e Nova Yorque, e levava-mos ambos a sério, de ambos nos ríamos e talvez, de vez em quando, ao observar o outro, ambos nos irritássemos um pouco... mas nunca te quis Barbie, nunca te quis de sorriso sempre aberto e linear, até porque não vivo no mesmo mundo daqueles de sorriso permanente e gargalhada fácil... não é essa a minha natureza... por isso me encantavam os matizes, as discussões intelectuais, meio a sério meio a fazer de conta, enquanto seguráva-mos, senhores do mundo, um copo de vinho barato, embrulhados numa colcha de Hipermercado.
- Acho que já não acabo este terceiro copo, além de que estou a ficar muito ensonada. Vou-me deitar...
- Espera, não vás já! Dá-me 5 minutos Luisa, fica só mais 5 minutos aqui enquanto vou ao quarto.
- Mas porquê? Tenho sono, amanhã tenho que me levantar cedo se não perco o comboio das 8:20 para Sete-Rios.
- Eu sei, mas são só 5 minutinhos Luisa, dá-me só 5 minutinhos .
Entrei no quarto, tirei do bolso do casaco um pacote com pequenas velas pretas em caixinhas redondas de lata que tinha comprado no chinês da minha rua nessa mesma tarde. 10 velinhas a 1 Euro. Dispu-las no chão em duas fileiras até formar um pequeno caminho da porta até à cama. Saquei dum isqueiro e acendi-as. Depois procurei na rádio o programa da noite onde um senhor com uma voz baixinha e suavemente rouca e arrastada anunciava o Sinatra, o Raul Gil, e até o Non ho l´eta per amarti de um tal de Gigliola Cinquetti, que não fazia ideia quem fosse, mas que interessava isso, era italiano e isso bastava-me.
Chamei-te. Ouvia a sola nua dos teus pés chapinharem nos tacos de madeira enquanto te aproximavas. Ao abrir a porta um sopro não previsto apagou duas velas, mas nem de perto quebrou o efeito do caminho luminoso. Paráste... olháste para o chão e os teus olhos seguiram as velas até os reergueres à procura dos meus... nunca falavas quando te vinham as lágrimas aos olhos, não agradecias, não explicavas as sensações, o que ía dentro de ti, apenas sentias... dirigiste-te a mim, abraçaste-me e encostaste a cabeça no meu ombro...
...beijaste-me... beijamo-nos... fizemos amor. De manhã apanhámos o comboio juntos e como sempre tu desceste em Sete-Rios e eu em Entre-Campos.
Alguns meses depois acabámos... soube mais tarde, por a tua amiga Paula com quem me cruzei no clube de vídeo, que tinhas aceite dirigir um novo projecto da empresa num desses novos países no Leste da Europa, que pagavam bem e estavas entusiasmada.
Pouco tempo depois conheci outra pessoa... não mais entrei num Japonês... e li certo dia num quadradinho do jornal que tinha falecido o tal de Gigliola Cinquetti.