Aos 16 anos dobrei o Cabo-da-Boa Esperança...
Enquanto o filho do Coronel chocava carrinhos no convés sob o olhar atento do Adamastor eu tilintava chapéus de cinza do cigarro, suspensa naquela história de pedra, nas feições do velho gigante que me pareceu chorar um pedregulho quando não mais carrinhos a chocar e novamente apenas o imenso frio oceânico pela frente...
Aos 16 anos ía jurar que saltos de pé-coxinho sobre o Cabo-das-Tormentas e hoje o Tejo um fio de água que me estilhaça as naus (não as costelas) nos pontões do Terreiro do Paço... e a minha mãe no monte a viajar o pão para o forno, não a minha mãe já sem forças para a pá, sentada em pernas reformadas que o doutor substituiu por rodas, ou talvez não mais a minha mãe mas o meu pai que também já reduzido a pedregulhos depois de não mais a minha mãe a dizer-me
- Não cases que ele é mau filha
Eu na Praça do Comércio onde o rei montado no seu cavalo e vestido com cocó de pombo anuncia uma batalha que já foi, onde o cais das colunas aguarda navios que não chegam, onde o relógio do arco desespera por um relojoeiro que tarda, onde os mendigos no chão dos ministérios esmolam por um Inverno que os leve e onde os madrugadores da margem sul anseiam por um sentido que não têm. Eu à espera do boneco verde careca com uma perna à frente e outra atrás que faz parar os carros e andar as pessoas, a desejar que o boneco verde careca com uma perna à frente e outra atrás me dissésse para onde ir já que eu demasiado quebrada para saber...
53 anos e já não dobro cabos-das-tormentas, vivo-os nuns olhos baixos, de mãos trémulas e pescoço vencido... aos 16 anos face a face com o monstro, peito cheio de vento e a saber para onde navegar... eu que não queria ir às Índias, bastava-me um apartamento com vista para o Vale do Silêncio, um pequeno bar com licores para receber as visitas e um pequeno chiuaua chamado Adamastor, uma semana de Agosto na Quarteira (podia até ser em Alfarim, podia-mo-nos ficar por Alfarim juro) e uma ida ao S. Carlos no Aniversário... mas já não os dobro, vivo-os e então uma camisa mais clivada e logo dois quilos de mão que me levam três dentes fracos desde o aleitamento
- Sua porca, para quem é que te vestes assim?!
A minha mãe a empurrar o pão (ou a mim... deita-me a mim na fornalha mãe), ou o meu pai afogado em pedregulhos
- Ele é mau
O meu mais novo de olhos fechados a girar o globo encavalitado no apára-lápis e a interromper a rotação com o indicador, a abrir os olhos
- Na Austrália mãe, a mão do pai não chega à Austrália
Enquanto o do meio braços presos às grades da cama esticando-os para que eles do tamanho dos do pai
- Uma semana mãe, dá-me uma semana e ele não te toca mais
E o meu mais velho, na idade em que o brilho das retinas embaça, melancólico e consternado
- a "dor" do Jonny Cash dura meio cigarro mãe, eu medi, peço-te meio cigarro de dor e passa, não respondas por favor...
Não dobrei mais cabos, não fomos para a Austrália e os braços não esticaram... mas outra noite e meio cigarro de dor... não respondi... mais meio cigarro e eu dócil como uma bezerra... um maço inteiro de dor e finalmente a minha mãe
- Vem ter comigo... o pão está quentinho...
E bem longe o Adamastor em pedregulhos por mim...
" If I coul start again
a million miles away
I would keep myself
I would find a way... "