Lembro-me de ti avô...
de te esperar num alegre entusiasmo de pardal, escoltado por azinheiras e eucaliptos da altura dos sonhos... lembro-me de ler bandas-desenhadas de algodão nas páginas azuis do céu enquanto tu picaretavas as entranhas da terra... recordo o cheiro do pão cozido a lenha e das sopas de café da avó, do aroma primaveril dos um-dó-li-tá das filhas da Ti Cegonha e de inalar um exército de girassóis enquanto tu agredido por suores e vapores de monstro que te agrilhoavam os pulmões... eu em acenos de adeus ao sol laranja que já se derretia nas águas calmas da tapada e tu a surgir bem lá ao fundo, numa silhueta de soldadinho de chumbo, depois do alarme berrar as sete, trazendo sempre em ti um pouco da montanha... eu que te chamava o meu avô da montanha, que sempre julguei que lá vivias, quando cada vez mais era ela a habitar-te, quando cada vez mais te apodrecia por dentro... a montanha que te roubou uma mão e eu a chorar no teu colo e a perguntar
- Dói muito avô?- Meu querido, a dor é apenas uma opinião do espírito que o avô aprendeu a ignorar...
Mas a montanha que tu enfraquecias por tuneis de térmitas não te perdoou e crescia em ti desalojando o oxigénio dos teus brônquios de luto e atirando-te para uma cadeira de rodas...
E um dia a montanha venceu o meu avô... nesse dia eu nascia na Alfredo da Costa encadeado pelo brilhante esmalte da minha mãe enquanto no Alentejo os chaparros choravam resina pelo meu avô da montanha... que não conheci mas nunca esqueci... porque tal como a dor é apenas uma opinião do espírito, a morte não passa dum grande sermão... e o meu avô nunca foi em conversas de chacha.