Uma visita ao dentista, apesar de comum, é a experiência que mais se aproxima de uma abdução alienisna, diferindo apenas na condição voluntário/involuntário que dista ambas.
Entro na clínica e dirijo-me à recepção, onde, após algumas questões, Berta, uma criatura oxigenada sem queixo, daquelas em que o pescoço se liga directamente à boca, me encaminha para o consultório.
Neste, caiado numa brancura que pretende enganar os nervos e transmitir uma aura de pureza e tranquilidade, o Dr. recebe-me com simpatia, procurando afastar a minha atenção do polvo ortodôntico que irrompe no centro da sala, trono indesejado das minhas inquietações.
Antes de aplicar a anestesia, pergunta-me por problemas cardíacos. Obrigado pela preocupação Dr., certamente que alturas houve em que todos já desejámos uma desvitalização que nos matásse os nervos mais profundos desde o endo ao pericárdio, mas desta vez a dor é apenas nos dentes.
Aproxima-se com o tabuleiro e para afastar de mim a imagem duma sala de inquisição procuro fixar o olhar no tango argentino que passa na tv. O Dr. autoriza-me a cuspir… com metade da cara imóvel o cuspo sai pouco convicto e quando me deito percebo que, qual cordão umbilical unido à placenta, um ténue fio de saliva percorre os meus lábios até ao lavatório. Antes que o Dr, repare e julgue que tive um AVC tento um gesto subtil mas eficaz que quebre o embaraçoso laço.
A Berta irrompe pela sala e pergunta se foi chamada. O Dr. pouco convicto responde que não… para ter a certeza resolve certificar-se e pergunta-me se havia chamado a Berta. Dr. deu-me indicações expressas para não mexer a cabeça, tenho metade da cara inutilizada e não há maneira de terminar o eterno felatio a toda esta gama de aparelhos de ortodoncia, acha que é a melhor altura para conversar? apeteceu-me responder. Em vez disso soltei um AAAHHHMMMM e deixei-o à interpretação.
A Berta voltou para a recepção onde a esperava o Zé Maria que queria um branqueamento para condizer com a tez laranja que horas antes apurara no solário. Não sem antes lamentar, a Berta informou o cliente que, ao contrário do que o site indicava, os branqueamentos só eram grátis em caso de receber outro qualquer tratamento pago. Zé Maria questionou então quanto seria o branqueamento embora, beto orgulhoso que é, não sem referir que tal lhe era indiferente pois nunca seria impedimento, com uma tal firmeza que o julguei ouvir dizer que se sentiria até ofendido por receber tratamento grátis e insistiria sempre em deixar qualquer “coisinha” até porque a chegar ao conhecimento dos seus pares tal seria certamente razão para a sua expulsão do clube tauromáquico e apreensão por tempo indefinido dos seus sapatos de vela.
De volta ao consultório, o Dr. insistia em escavacar-me a cremalheira enquanto eu procurava por todos os meios não cruzar o olhar com o dele, não apenas pelo cariz homossexual que existe num olhar frontal entre dois homens, mas também porque este era dono de uma farfalhuda mono-sobrancelha cuja existência eu preferia dar ares de ignorar.
Finda a provação, libertei-me dos tentáculos, dei um passou-bem ao Dr., agendei a próxima consulta com a Berta e, já no exterior, com um sabor a óleo de fígado de bacalhau fora do prazo na boca, pergunto: O que passa na cabeça de alguém para escolher ser Dentista?